domingo, fevereiro 04, 2007

Da Singularidade da Psicologia


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INTRODUÇÃO

Kant na obra denominada “Prolegômenos” formula que:


“Quando se pretende apresentar um conhecimento como ciência, é necessário, antes de mais nada, poder determinar precisamente seu caráter, o que ela não tem em comum com nenhuma outra, e que lhe é portanto, peculiar; caso contrário, confundem-se os limites de todas as ciências e nenhuma delas pode ser tratada profundamente de acordo com sua natureza. Quer esta peculiaridade consista na diferença do objeto ou das fontes do conhecimento, ou ainda do modo de conhecimento, de algumas destas coisas senão todas juntas, é sobre isso que se baseia antes de tudo a idéia da possível ciência e de seu domínio”.

Tomando como ponto de partida esta concepção de ciência, caberia a seguinte pergunta: em que consiste a peculiaridade da psicologia? E ainda: não havendo esta peculiaridade, seria exato classificá-la como uma não-ciência? Em torno dessas duas questões procuramos responder onde se encontra a psicologia no campo dos saberes diversos e ainda, que modelo de ciência poderíamos pensar a partir desta questão?



A REVISTA RÁDICE

“Rádice foi uma Revista de Psicologia, produzida por psicólogos cariocas entre 1976 e 1981. Esta revista foi de grande importância (intelectual e afetiva) para a geração que, durante o período da ditadura militar brasileira, graduava-se em psicologia. Levava aos seus leitores matérias sobre temas variados e polêmicos, não existentes nas revistas de psicologia da época, como a repressão política, o tratamento desumano nos hospitais psiquiátricos, a regulamentação da profissão de psicólogo, as terapias corporais, entre outros. Participava, com outras publicações ”nanicas", do Comitê de Imprensa Alternativa, indicando sua participação ativa nos debates políticos ocorridos à época. A Rádice foi um analisador da constituição histórica da psicologia carioca, sendo um dos poucos dispositivos de divulgação do pensamento de outras formas de se fazer psicologia.” (SANTOS & JACO-VILELA, 2005)


Na década de 70 a Revista Rádice inaugurou um debate teórico acerca da posição do saber psicológico em relação às “ciências”.

L. A. Garcia Roza coloca a psicologia como um espaço de dispersão do saber e afirma uma concepção segundo a qual fazer ciência não é uma questão de simples observação empírica, mas de construção de um objeto irredutível a outra ciência, e que no caso da psicologia seria fundamental não deixar-se reduzir a um outro saber e ainda que negar a cientificidade é diferente de negar-se (no caso da psicologia) a sua existência ou eficácia.


Em resposta, G. Baremblitt muito apropriadamente lembra do prestigio acadêmico e social que está em jogo quando um saber é classificado ou não como ciência, porém realiza uma determinada interpretação segundo a qual a psicologia da consciência, das faculdades mentais, behaviorismo, gestalt, etc. são ideologias pré-científicas teórico-práticas e apenas a psicanálise poderia ser considerada uma ciência, “a ciência do Psiquismo”.


José Nóbrega, que assina o terceiro artigo, indica que não existe apenas uma epistemologia e que também não existe uma teoria sobre ciência que seja universalmente aceita e talvez por isso afirma-se praticamente qualquer saber como ciência de acordo com a interpretação de alguma teoria. O autor indica a necessidade de critérios de confiabilidade, precisão e eficácia para separar o científico da mistificação e ainda que produzir conceitos irredutíveis é uma condição necessária, mas não uma condição suficiente para se fazer ciência, posto que também seria necessário um retorno ao empírico como critério de validação. O ponto nevrálgico dessa questão para o autor é que existe de fato “um excesso de opinião, de ideologia e de pregação no conhecimento que se tem produzido nas ciências humanas”, e que explicar a ciência pelo modelo de análise das descontinuidades não dá conta de toda dimensão do problema e também que retirando-se da psicologia o que é meramente opinião, a “colcha de retalhos” certamente diminuirá.


Polêmica posta, é importante notar as questões epistemológicas implicadas na definição do saber psicológico, porque está em foco não apenas se a psicologia é uma ciência ou se essa classificação é importante, mas uma definição dos critérios gerais determinantes da cientificidade e ainda, quais são os limites do saber dito cientifico e a importância ou não daquilo que não é cientifico.



ACEITAR A DISPERSÃO OU ESTABELECER CRITÉRIOS?



Para Canguilhem, “numa trama histórica, alguns fios podem ser inteiramente novos, enquanto outros são tirados de texturas antigas”. No caso da psicologia temos a metafísica como se fossem os fios mais antigos desta trama e o modelo de ciência moderna como se fossem os fios mais recentes, mas o que faz a costura deste saber? Seria esta junção filosofia-ciência um artificialismo ou uma resposta a uma demanda muito específica que veio à tona no século XIX? E mais: esta é uma simples junção ou se trata de um saber formado na singularidade?


De fato existe uma dispersão que é inerente ao saber psicológico e nesta dispersão notamos tanto o rigor metodológico cientifico, quanto conhecimento descritivo e até um pouco de mistificação, então resta saber se esta configuração deve se manter ou se devemos abrir mão de algo em favor da coerência interna da psicologia.


Porém não é demais lembrar que, se por um lado o método cientifico confere um estatuto ímpar de confiabilidade, por outro também oferece limitações, o que no caso da psicologia poderia ser um tanto castrador, limitante. Contudo se abdicarmos do rigor cientifico, então a psicologia estaria limitada a ser uma ideologia.


Mas quando observamos um pouco mais atentamente as ciências naturais notamos que não existe ciência até o momento que esteja completamente livre de ideologia, porque pensar uma ciência livre de ideologia é pensar uma ciência atemporal, quando na verdade as ciências são contextuais, ou seja, procuram responder às demandas de uma constituição histórica, então não seria exato dizer que fazer ciência é produzir verdades a menos que se esteja disposto a entender verdade como contingência e ainda: a própria existência do saber cientifico está condicionada a contingências históricas, afinal, a ciência (agora generalizando para fins de argumentação) não existe desde sempre, por mais que alguns pretendam ainda afirmar os gregos como iniciadores de algo. Então quando Newton formulou o cálculo diferencial e integral, não estava partindo de um princípio transcendente, mas estava respondendo a uma demanda específica: precisava de um instrumento matemático para dar conta de sua teoria.


De fato a psicologia aparenta ser mais composta de ideologias que as ciências naturais, mas talvez isso se deva à natureza dos problemas que procura responder. Existem leis da física para responder porque um barco flutua, mas neste sentido, que formulações científicas poderiam explicar a totalidade da experiência humana? Considerando os limites da ciência como único método, seria razoável que a psicologia se tornasse uma ciência natural?


CONSIDERAÇÕES FINAIS
- Um retorno à singularidade



O que poderíamos pensar como objeto irredutível para a psicologia? Se as ciências naturais estudam os fenômenos da natureza, se a antropologia estuda como se estruturam as diversas sociedades e a sociologia estuda as relações sociais, o que serve à psicologia tratar como objeto de estudo?

O que é a condição humana afinal e o que ela nos traz em termos de construção de conhecimento? Onde a psicologia entra neste ser histórico e ao mesmo tempo natural, que é o homem?A psicologia surge como ciência no século XIX em função da ciência moderna, e esta depara-se com um obstáculo capcioso: o próprio homem! O que pertence ao homem, que escapa à mensuração e o que não escapa? Como demarcar?


Nós, seres humanos, muito mais do que emitir sons, fazemos música; muito mais do que dizer enunciados, produzimos discursos e subjetividade; comunicamos, porém muito mais do que isso criamos lirismo, literatura. Enfim, fazemos ciência, mas ao fazê-la inventamos o homem produzindo discursos sobre o homem e para o homem.


Talvez seja mais interessante recolocar a questão considerando a importância do cientifico e do não-cientifico, abrindo mão de hierarquizações, deixando abertas as possibilidades.
Ainda que a psicologia seja, inerentemente um espaço de dispersão do saber isso não implica em desqualificação e certamente sua peculiaridade não está em seu objeto, em suas fontes de conhecimento ou em seu modo de conhecer. Talvez este fato nos indique onde consiste a singularidade do saber psicológico.




BIBLIOGRAFIA


BAREMBLITT, Gregório. As psicologias, a ciência e a travessa resignação. In: Rádice – Revista de Psicologia. Rio de Janeiro: ano 2, nº 5, s/d.

CANGUILHEM, Georges. Ideologia e racionalidade nas ciências da vida. Lisboa: Edições 70, 1977.

GARCIA-ROZA, L.. A. Psicologia: um espaço de dispersão do saber. Rádice, 1(4) , p.20-26, 1977

KANT; Imanuel. Prolegômenos. Tradução de Tania Maria Bernkopf. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).

MORAES; Márcia. Que objeto para a psicologia?. Rio de Janeiro, 2003.

NÓBREGA; José. Ciência, critérios e obstáculos. In: Rádice – Revista de Psicologia. Rio de Janeiro: ano 2, nº 6.


Artigo de Internet

SANTOS, Alessandra Daflon dos; JACO-VILELA, Ana Maria. Rádice: past and future. Psicol. Soc., Porto Alegre, v. 17, n. 3, 2005. Available from:
. Access on: 04 Nov 2006. doi: 10.1590/S0102-71822005000300004.

2 comentários:

Robby disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Robby disse...
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