quinta-feira, fevereiro 01, 2007

A MULHER E O CORPO:CONSIDERAÇÕES A PARTIR DO FEMININO


Pensar analiticamente na condição feminina não é das tarefas mais fáceis, principalmente porque ao longo da história, quem pôde falar a respeito da mulher foi e ainda tem sido o homem.

Mas o que a mulher tem para falar de si após tantos séculos de silêncio forçado? Sacerdotisas pagãs, prostitutas sagradas, poetisas da Ilha de Lesbos e Amazonas; todas elas um pouco lenda e um pouco históricas (se bem que no caso das Amazonas os registros são inexistentes), e por fim, a mulher-demônio, a bruxa e a histérica.

As últimas fazem parte do discurso masculino a respeito da mulher e são frutos não apenas de uma simples violência ou puritanismo, mas da fantasia masculina que busca calar o feminino na mulher e em si próprio.

Passeando por este imaginário, encontramos em nosso próprio mito de criação as origens do patriarcalismo e dos obstáculos que cercam a condição feminina. Como a mulher foi demonizada? Que dimensão é essa própria do desejo feminino, capaz de confrontar a masculinidade?

A feminilidade já foi analisada pela ótica masculina por diversas vezes, ultimamente também pela ótica dita feminista e todas as vezes um certo sexismo se fez presente. Como pensar o feminino a partir de outra ótica? O que temos nós; virgens ou lascivas, santas ou putas, sacerdotisas ou bruxas, amantes ou mães para falar a respeito do nosso desejo? Acaso nosso desejo se funda na inveja do pênis como sugere Freud?
Seja qual for a possível resposta, certamente não será dada nem a partir de
Freud e nem pela fé cristã. Cabe às própria mulheres, histéricas ou não, dizerem algo a respeito do que querem e de como desejam.

O mito da criação: Lilith e Eva como os dois aspectos do feminino


“ Criou, pois, Deus o homem à sua imagem; à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou.” (livro de Gênesis, 1:27)

O mito de criação cristão diz que Deus criou Adão para cuidar do Jardim do Éden e como o homem sentiu-se muito só, Deus criou também Eva de suas costelas e pelas mãos de Eva, Adão caiu em desgraça.

Ultrapassando o cristianismo, temos na tradição dos testemunhos orais reunidos nos textos da sabedoria rabínica um mito mais complexo e também mais interessante em termos de análise, posto que evidencia de forma muito clara a dualidade do feminino.

Muitas são as contradições a respeito do mito de Lilith, principalmente por este ter sido suprimido do Livro de Gênesis na versão bíblicas dos sacerdotes, mas Lilith, segundo esta tradição, foi a primeira mulher de Adão e foi feita pelas mãos de Deus, de barro. O amor entre Lilith e Adão logo foi perturbado:

“(...) não havia paz entre eles porque quando eles se uniam na carne, evidentemente na posição mais natural - a mulher por baixo e o homem por cima – Lilith mostrava impaciência. Assim perguntava a Adão: ‘ – Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo? (...) Por que ser dominada por você? Contudo eu também fui feita de pó e por isso sou tua igual’ (...) Adão responde cm uma recusa seca?: Lilith é submetida a ele, ela deve estar simbolicamente sob ele, suportar o seu corpo. Portanto: existe um imperativo, uma ordem que não é lícito transgredir. A mulher não aceita esta imposição e se rebela contra Adão.” (SICUTERI, 1985)

Ao recusar Adão, Lilith afirma-se como transgressora profanando o nome de Deus e fugindo em direção ao Mar Vermelho. E apesar do desígnio divino, Lilith prefere ser execrada a submeter-se novamente a Adão.

Eva, por sua vez, foi criada da costela de Adão e esta companheira o contenta, pois: “Então disse o homem: Esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; ela será chamada varoa, porquanto do varão foi tomada.” (livro de Gênesis, 2:23). Eva é, portanto, parte de Adão e seu desejo será para seu marido, como prescreve Deus. Porém Eva também transgride e leva Adão à perdição ao comer o fruto do conhecimento do bem e do mal. Segundo a tradição então, a mulher trouxe a morte ao mundo.

Poderíamos pensar então Eva e Lilith como dois aspectos do feminino: Eva representa a mãe e a Lilith a amante; Eva é o amor e Lilith é o desejo carnal; Eva é submissa enquanto que Lilith é insubordinável. Lilith é a mulher-demônio, é o “vaso do espírito satânico”, é o feminino que desafia a masculinidade.

Em Lilith está a essência da mulher que desafia, interroga, questiona ou anula no homem, sua própria masculinidade. É a mulher que não pacifica o amor, que não nega a sexualidade, enfim, mulher como ser desejante.

A mulher anda numa corda-bamba, onde de um lado estará a puta e do outro a santa (ou mãe, se preferir), porque o homem, ao que parece, não suporta a conjunção Eva-Lilith, ao contrário, ele mesmo faz esta separação e por isso não pode amar a mulher que deseja e tampouco desejar a mulher que ama.

A mulher e o gozo para Lacan

“E à mulher disse: Multiplicarei grandemente a dor da tua conceição; em dor darás à luz filhos; e o teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará.” ( Livro de Gênesis, 3:16)

Para Lacan, o gozo está para além do princípio do prazer e indica processos de transgressão dos limites entre o sofrimento e a morte. A linguagem impõe um único significado paro o gozo: o fálico e Lacan formula a existência de um Outro gozo, fora da linguagem, silencioso. Os homens, segundo esta concepção estão inscritos na função fálica, enquanto que a posição feminina estará inscrita em um não-todo fálico. A mulher é duplicidade, posto que se insere no lado fálico (condição para que possa falar e pertencer a uma cultura) e ao mesmo tempo no lado do gozo do Outro, no qual reina a ausência do simbólico. A mulher então se relaciona com o simbólico e com o real.

Para Maria Helena Grant, falar da duplicidade feminina é falar de uma “falta estrutural de significante que a nomeie, que a localize em uma cadeia simbólica, é ficar cativa de uma relação amorosa que esboce a possibilidade de uma resposta para sua identidade: ‘’você é aquela que eu amo’”. E ainda: neste sentido, podemos pontuar a supervalorização do amor para a mulher, pois que ele permite uma suplência de nomeação, ali onde é pura falta.”

Mas o que acontece se a mulher escapa do gozo fálico? O que é ser mulher afinal? E ainda: como é possível o amor entre mulheres?

Safo: o masculino confrontado

“E terna a meu lado deitada.

Em um leito macio, como tu em mim

Não mitigavas tua sede e fome.”(Safo de Lesbos)

Safo (Psappha - como a própria assinava, no dialeto eoliano), nasceu em Eresos, uma cidade da fértil ilha de Lesbos por volta de 612 a.C. (data mais provável), mudando-se para Mitilene ainda menina. Já em 593 a.C. figurava dentre os aristocratas deportados para a cidade de Pirra (também na ilha de Lesbos) por conspiração. Safo já tomava parte da vida pública (na política e na poesia) aos 19 anos. O ditador Pitaco, temendo-lhe a escrita, condenou-a a um exílio mais distante, fora da ilha de Lesbos. Por volta de 591 a.C. parte para a Sicília. Naquela época casou-se com um rico comerciante de Andros que, falecendo em breve, deixou-lhe uma rica herança e uma filha, Cleis, que a mãe assim definia: "dourada flor que eu não trocaria por toda a Lídia, nem pela formosa Lesbos".

Após cinco anos exilada, volta para Lesbos, onde logo se torna a líder da sociedade local, no plano intelectual. Sedutora, não dotada da beleza na concepção grega da época (embora Sócrates a houvesse denominado "A Bela"), Safo era baixa e magra, olhos e cabelos negros, e de refinada elegância, viúva.

Concebeu Safo uma escola para moças, onde lecionaria a poesia, dança e música - considerada a primeira "escola de aperfeiçoamento" da História. Ali as discípulas eram chamadas de hetairai (amigas) e não alunas... E a mestra apaixona-se por suas amigas, todas... dentre elas, aquela que viria a tornar-se sua maior amante, Atis - a favorita, que descrevia sua mestra como vestida em ouro e púrpura, coroada de flores.

Seja porque a histeria fosse mais freqüente entre as mulheres, seja porque, como para todo homem, a mulher era um enigma para Freud, o fato é que podemos observar, até em suas últimas obras, o eco da pergunta: “O que quer a mulher?”

Safo, a poetisa nos remete a um aspecto da mulher que é particularmente interessante: a capacidade de amar outra mulher e assim fazendo, desafia o homem em sua própria masculinidade. Para Grant, “a homossexual mulher é servente do gozo d’A Outra, e neste aspecto e, rivaliza com o homem, desafia-o. A sua maneira de lidar com a ‘inveja do pênis’ é mostrar ao homem, muitas vezes testemunha invisível, que mesmo não tendo falo é capaz de provocar o gozo ou o mais-que-gozo em sua parceira. Mais que isto, ela busca fazer gozar a parceira, melhor do que o homem o faria.”

Mesmo acreditando que esta é no mínimo uma explicação parcial deste aspecto do feminino, podemos relacionar a homossexualidade feminina com a Lilith, o aspecto transgressor do feminino. A lésbica procura não estar submetida ao homem, recusa a supremacia do masculino e desenvolve sua sexualidade por outras vias.

Penso não ser de muita valia analisar o feminino a partir da estrutura histérica entendida como psicopatologia. Procuro afirmar a feminilidade a partir de uma positividade e de uma legitimidade, o que significa dizer que, a mulher transgressora, independentemente de ser esta uma histérica, afirma-se como sujeito a parte de uma “falocracia”.

A súcubus, a bruxa e a histérica são construídas a partir de uma lógica do masculino e não do feminino. Assim sendo, as temidas sucubi que cavalgavam os homens à noite, as bruxas que atentavam contra a virilidade e as histéricas “convertendo” sua sexualidade em loucura são muito mais próprias da fantasia masculina do feminino do que o feminino por si. A mesma coisa poderíamos dizer da Maria, a mãe suficientemente boa, por assim dizer, portadora da salvação da humanidade, a virgem, a própria negação da sexualidade (e por conseguinte do feminino), afinal, Jesus foi concebido sem ato sexual. Poderíamos até mesmo dizer que Maria é o arquétipo perfeito da mãe, tal como o homem a concebe.

A proposta é então, uma reflexão feminina da feminilidade. Não espero a acolhida de psicanalistas por esta vertente, afinal a psicanálise se funda na histeria, mas ainda assim teimo em convidar “As psicanalistas” a pensar o tema da feminilidade a parte da teoria freudiana. Longe de desqualificar a teoria psicanalítica, é importante duvidar (à moda dos céticos) de “dogmas” como “inveja do pênis” e também da formulação de Freud a respeito do mítico “orgasmo vaginal”. É importante lembrar que para Freud, o feminino é o lugar da ausência, do obscuro, do mistério. Se assim é, que segredos as mulheres teriam para acrescentar à psicanálise?

Deixo à poetisa Safo o lirismo feminino:

A Átis

tradução de Décio Pignatari

Não minto: eu me queria morta.
Deixava-me, desfeita em lágrimas:

"Mas, ah, que triste a nossa sina!
Eu vou contra a vontade, juro,
Safo". "Seja feliz", eu disse,

"E lembre-se de quanto a quero.
Ou já esqueceu? Pois vou lembrar-lhe
Os nossos momentos de amor.

Quantas grinaldas, no seu colo,
— Rosas, violetas, açafrão —
Trançamos juntas! Multiflores

Colares atei para o tenro
Pescoço de Átis; os perfumes
Nos cabelos, os óleos raros

Da sua pele em minha pele!
[...]
Cama macia, o amor nascia
De sua beleza, e eu matava
A sua sede" [...}

Cai a lua, caem as plêiades e
É meia-noite, o tempo passa e
Eu só, aqui deitada, desejante.

— Adolescência, adolescência,
Você se vai, aonde vai?
— Não volto mais para você,
Para você volto mais não.

(31 Poetas, 214 Poemas. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1996)

A uma mulher amada


Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro... eu tremo.

BIBLIOGRAFIA

GRANT, Walkíria Helena. “Considerações sobre a homossexualidade feminina” In: Psyqué, ano/vol. VI, número 009. Universidade São Marcos, São Paulo. Acesso em: 16/12/2006.

MCDOUGALL; Joyce. “Conferências Brasileiras” p. 103-123 . Rio de Janeiro, 1987. Ed Xenon.

Miranda ; Sabrina de Aguiar. “Amor entre mulheres : Um estudo sócio-antropológico das relações afetivas entre pessoas do sexo feminino”. Monografia de Conclusão de Curso; Universidade de Fortaleza. Fortaleza, Ceará. 2001.

SCHESTATSKY, Sidnei et al . Historical evolution of the concept of posttraumatic stress disorder. Rev. Bras. Psiquiatr., São Paulo, v. 25, 2003. Available from: .

Access on:17 Dec 2006. doi: 10.1590/S1516-44462003000500003.

SICUTERI; Roberto. “Lilith a lua negra”. tradução:Norma Telles, J. Adolpho S. Gordo – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 2ª edição.

Sitio: http://pt.wikipedia.org/wiki/Safo

Sitio: http://kplus.cosmo.com.br/materia.asp?co=18&rv=Literatura



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