quinta-feira, fevereiro 01, 2007

PSICANÁLISE E DESTINO: CONSIDERAÇÕES A RESPEITO DA LIBERDADE


“liberdade é uma palavra que o sonho humano alimenta, não há ninguém que explique e ninguém que não entenda” (Cecília Meireles)


"Poderei parecer panfletário, mas serei livre para dizer exatamente aquilo que penso." (Dostoiewiski)


O objetivo deste trabalho é pensar a liberdade. Pensar a liberdade é muito mais do que pensar o conceito cristão “livre arbítrio” - que consiste em escolher naquilo que já está pronto e acabado – mas sim, pensar também o desejo, a condição humana, bem como nossas próprias ideologias.

Que conceito poderíamos pensar em termos de liberdade? Afinal o que é a liberdade? Não podemos pensar numa liberdade verdadeira se esta for concedida por alguma entidade cósmica ou se esta consistir em apenas desconhecer o que nos controla. Mas afinal, é possível a liberdade?
Mas como pensar a liberdade sem pensar em desejo, e neste pensar, como pensá-los antes de uma ética? O que nos prende afinal, se a liberdade não for possível? O que a psicanálise teria para contribuir a este antigo problema filosófico?

DESTINO E LIBERDADE

Destino e liberdade são antagônicos, mas instituem no sujeito o paradoxo. O sujeito logicamente pensado somente poderia ser livre ou pré-destinado, porém, quando se trata do “bicho humano”, paradoxos são perfeitamente possíveis.

Pré-destinados, uma vez que nossas ações não são de forma alguma arbitrárias ou aleatórias e grande parte delas vem de algo desconhecido que nos impulsiona. Não seria o Inconsciente o grande fabricador do destino? Não temos nós, a impressão nítida de algo que se assemelha à “Divina Providência”? Que tudo é como se já estivesse dado? Pois bem, não é demais lembrar do desconhecido que carregamos dentro de nós.

Porém livres se formos pensar que de alguma forma operamos naquilo que nos estrutura, ou seja, não somos simplesmente marionetes. Ao contrário, nós de fato produzimos destino, consciente ou inconscientemente.

Onde estaria esta tênue fronteira entre a liberdade e a predestinação?
A liberdade somente pode ser iconoclasta, ou seja, existe onde ídolos podem ser destituídos e onde pode haver subversão. Na destruição de todos os referenciais, a liberdade pode ser encontrada apenas na região limítrofe da vida. Em outras palavras, alcançar a liberdade é morrer de alguma maneira.

SARTRE E AS IDEOLOGIAS

O prefixo "u" da palavra utopia indica uma negação, porém não a mesma simples negação do prefixo "a". O prefixo "u" pode significar também "outro". Sendo topia uma derivação de "topos" que quer dizer lugar, utopia é um outro lugar.

O que é ideologia?

Tratando etimologicamente da questão, ideologia é um discurso sobre as idéias. De modo mais prático e trivial podemos igualar ideologia e doutrina. Doutrinas baseiam-se em idéias e estas são arbitrárias. arbitrárias simplesmente porque não existem critérios segundo os quais poderíamos afirmar com segurança qual ou quais ideologias são verdadeiras ou falsas. A liberdade para Sartre é pensada ontologicamente, ou seja, para Sartre a liberdade é a propriedade maior do sujeito humano e este apenas não tem a liberdade de não ser livre. Este homem de Sartre é, pois sem desculpas, já que não existe um “plano divino”, para determinar nossas ações e sendo o homem este ser ilimitado em suas possibilidades, encontra-se condenado a ser livre e mais do que isso, condenado a inventar o homem. Quais seriam as conseqüências menos óbvias da liberdade?

Longe de discordar de Sartre, chamo a atenção para nosso grande ardil enquanto seres humanos. Este ardil denomino como "a facilidade das ideologias". Sustento que tal facilidade não é apenas um artifício, mas aquilo que nos cimenta de forma tão profunda a um chão ilusório.

Quando utilizo o termo facilidade, refiro-me a algo bastante específico, posto que desde que existe cultura, existem ideologias e as ideologias são fortes prisões. E não importa se o que nos conforta é a crença de que Jesus nos levará ao paraíso ou de que o capitalismo tombará frente às suas contradições. Mais do que devoção a uma idéia, criamos ídolos, deuses e não interessa aqui se falamos do Deus Jeová, Alá, Marx , Henry Ford ou mesmo a própria Ciência. Nos agarramos a deuses que nós próprios criamos e assim amamos devotamente nossas prisões. Estar preso a uma doutrina é fortalecer nossos grilhões e mais do que isso, castrar toda e qualquer possibilidade de liberdade.

Mas escolher entre as ideologias é a própria liberdade ou é apenas ilusão de liberdade? Liberdade é necessariamente ruptura?

Diante de verdadeiras rupturas ficamos acuados porque a existência prescinde de sentido, porém o ser longe do sentido fenece, posto que ser livre é mais do que um fardo, é uma sentença de morte. Se algo nos indica que não somos mais especiais do que amebas, entram as ideologias salvadoras para nos conferir novamente o sentido, porque o sem-sentido é o caos e o caos se encontra no limite do insuportável. A existência precede o sentido e longe do sentido as ideologias se esvaziam.

Não existindo sentido à priori, como a psicanálise poderia pensar o sujeito e a liberdade? E ainda: como poderia existir este outro lugar?

PSICANÁLISE, ÉTICA E LIBERDADE

O que seria a liberdade para a psicanálise? Poderíamos pensar numa ética pautada pela liberdade?

Do ponto de vista lacaniano:

“(...) o desejo indica a impossibilidade de um sujeito coerente, entendido como instância consciente autodeterminada. A significação dessa instância estaria sempre previamente determinada por um significante inconsciente, o qual escapa às suas pretensões de clareza absoluta. Trata-se aqui do famoso sujeito dividido lacaniano, separado de sua unidade libidinal originária com o corpo materno, num processo que supõe o recalque originário como o principal operador da individuação. Assim o desejo é a expressão de um anseio de retorno à origem que, acaso recuperada, exigiria a dissolução do próprio sujeito. Segundo Lacan, é justamente essa impossibilidade de recuperação das origens que faz do sujeito um limite para a satisfação. Na medida em que emerge como uma contradição interna, fundando-se numa defesa necessária contra a união libidinal primeira com a mãe, o sujeito é basicamente o produto de uma proibição. Seu desejo é uma espécie de resíduo daquela união precoce, a memória afetiva daquele prazer anterior à individuação. Nestes termos, o desejo é ao mesmo tempo um esforço para dissolver o sujeito que barra o caminho para o prazer, e a evidência atual da impossível recuperação desse prazer.”

Se a divisão se encontra no cerne do sujeito e o desejo deste é orientado por esta divisão, que possibilidade existe para a liberdade em psicanálise? Acaso seria possível ao sujeito ultrapassar esta divisão na direção da liberdade?

Uma possível solução poderia estar no próprio sintoma neurótico, afinal, o neurótico sofre de repetição e neste sentido, que liberdade pode haver na repetição? Assim sendo, na resolução do sintoma pode-se encontrar a liberdade. Através da psicanálise, o sujeito pode confrontar-se com seu sintoma e a partir deste confronto, uma nova estrutura poderá ser construída.

Mas se a liberdade está na região limítrofe da vida, entre o simbólico e o sem-sentido, deve-se atentar para o fato de que alcançar a liberdade é necessariamente o “morrer utópico”, ou seja, morte do sintoma em favor de um outro lugar.

E se este morrer não é de forma alguma simples, o que dizer da ética?

“Em sua versão tradicional, a Ética, enquanto ramo da filosofia, dá-se como missão pensar ‘o tu deves’. O que devemos fazer, por ser o certo? Por outro lado, se fazemos o certo, somos necessariamente felizes? Tais questões ecoaram durante os anos, trazendo diferentes respostas. Por mais brilhantes, a incessante substituição e criação de novas tentativas de resposta, reflete o que dificilmente pode ser negado: nele, trata-se, sobretudo, de transmissão, por tradições as mais variadas, de preceitos que organizam a conduta de indivíduos e grupos. Não há, quanto a tais imperativos, fundamento último. Se a filosofia, neste campo ético, tomar para si a tarefa de produzir um conhecimento não contaminado por preferências ou incorreções lógicas, tudo que ela consegue são doutrinas sofisticadas que, inevitavelmente, repousam, em última instância, numa tomada de partido, no privilégio de algo que não pode ser justificado. Toda regra moral encontra seu limite em algo do tipo ‘por que é assim que é’, ou ‘tem que ser’, mesmo aquelas com crivo filosófico.” ( Raymundo de Oliveira Reis Neto)

Para Raymundo O. R. Neto, A cura, para a psicanálise, “passa por uma outra ética: a do desejo, que nos leva a assumir o ato diante do qual não podemos recuar, mesmo que sem justificá-lo inteiramente. Diferente da filosofia, da religião, da (neuro) ciência, sendo clínica ética, que proporciona a oportunidade de um outro modo de resposta à pergunta: o que desejas? Lembrando que o verdadeiro canalha é aquele que sempre se justifica. O perigo é a alternativa cínica, que conclui disso tudo nada dever justificar. Mas essa não esperou pela psicanálise para existir.”

Neste sentido, o sustentar do desejo, o responder pelo desejo está no escopo da psicanálise e neste sentido para sermos livres precisamos então construir este dito outro lugar e ao mesmo tempo, ser éticos ao responder pelo desejo o que logicamente acaba por ser indissociável e portanto difícil, quase insuportável.

Até aí, tudo bem, afinal, não foi dito aqui em nenhum momento que ser livre é ser feliz.

Referências

CALAZANS; Roberto. Sentido da subversão do sujeito pela psicanálise. In: Revista do Departamento de Psicologia – UFF, 16.2, 2004, Rio de Janeiro.

http://www.uff.br/ichf/publicacoes/revista-psi-artigos/2004-2-Cap8.pdf

Aceito em: Novembro de 2004 ; Acesso em: 3/12/2006

CALO, Orlando. Desenkantados: liberdade, responsabilidade, psicanálise. In: COLÓQUIO DO LEPSI IP/FE-USP, 5., 2006, São Paulo. Proceedings online... Available from:

. Acess on: 03 Dec. 2006.

COELHO JUNIOR, Nelson Ernesto. Ferenczi e a experiência da Einfühlung. Ágora (Rio J.)., Rio de Janeiro, v. 7, n. 1, 2004. Available from: . Access on: 03 Dec 2006.

PEIXOTO JUNIOR, Carlos Augusto. The law of desire and productive desire: transgression of order or affirmation of difference. Physis., Rio de Janeiro, v. 14, n. 1, 2004. Available from: . Access on: 04 Dec 2006. .










Nenhum comentário: